Acho que não existe expressão mais sacana que essa: aniversário de morte. E claro que você não perderia o ensejo de fazer piada com isso. Dia 20 de março celebramos a sua vida, para no dia seguinte lamentar o dia que você decidiu zarpar. Um intervalo de 77 anos dos quais eu aproveitei tão poucos.
Faz dez anos desde então, todos os dedos das mãos. Mãos que estão vazias. Alma também. É engraçado porque achei que o tempo sarava a dor. Mas descobri que saudade não tem remédio. Ela aperta a garganta e insiste em escorrer pelos olhos como agora, enquanto escrevo.
As lembranças vão ficando menos vívidas, os cheiros mais remotos, mas a falta é insistente. Onipresente. Muito maior que a medida da sua implicância, tenha certeza disso. A presença da falta não perdoa. Infame, ela teima em cuspir o real na minha cara diariamente.
Já nos encontramos em sonhos algumas vezes. E mesmo neles, em determinado momento, eu sei que você não está mais aqui. E você não pode imaginar a frustração que isso me dá. Acordo suspirando, com um sorriso triste. Esse era o meu maior medo, sempre foi. E quando o temor se concretiza deixa essa cicatriz profunda, essa convicção amarga que nem em devaneio se ameniza.
O meu bem mais precioso está guardado em uma caixa em formato de coração, estampada de joaninhas: nossas cartas. No dia que fui a sua casa para a nossa despedida final, entrei no escritório e lá estavam aquelas que eu havia te enviado. Caprichosamente organizadas em uma pasta com a capa escrita em vermelho: Ninica (sublinhado por dois grifos). Agora elas estão todas juntas, as suas e as minhas, conversando sem hiato.
O fato de morarmos em cidades diferentes sempre foi compensado pelo prazer dos nossos telefonemas intermináveis nas madrugadas insones. Justo você que me ensinou que telefone era só pra recado e pra conversa ligeira. Lembra quando você me ligava porque não conseguia recordar a letra de uma música? Eu, diligente, matava a charada e replicava em prosa porque se cantarolasse lhe doíam os ouvidos. Era repreenda certa, proporcional ao meu desafino desmesurado. Aliás, a mim era permitido cantar uma só música, que a gente ensaiou exaustivamente até que eu apresentasse um desempenho aceitável: João e Maria, do Chico.
Recentemente fui ao show do Chico. Você teria adorado. Ele estreou a turnê em Belo Horizonte depois de muitos anos longe dos palcos. Eu estava lá, nervosa como ele. Levei um bilhetinho acanhado que, através dessas correntes de boa vontade, consegui fazer chegar até a produção dele. Dizia:
“Chico, toca Valsinha, por favor! Era a canção favorita do meu pai que foi embora há dez anos. Ele era o meu grande amor e você não imagina como me faria infinitamente feliz se você cantasse essa música hoje. O dia certamente amanheceria em paz.”
O show foi lindo, pai. A cada nova canção o coração dava um saltinho, esperançoso em ouvir que o vestido cheirando a guardado de tanto esperar, tinha finalmente saído para dançar. Não rolou; tudo bem.
O presente que eu nunca te dei ainda está embrulhado, guardado em uma gaveta. Interrompido, assim como a promessa que você me fez, na ultima vez que eu te liguei para desejar feliz aniversário. Nessa conversa, você garantiu que me daria como presente de aniversário (que se realizaria dentro de alguns dias) 48 horas ininterruptas na mesa de buraco. Me lembro de recomendar: “Firma os cascos”! Depois disso, nunca mais ouvi a sua voz e o buraco que ganhei foi outro. Deboche da vida, essa é a sensação que fica. Um brinde no vazio, uma festa funesta desde que você sumiu no mundo sem me avisar.
Este texto foi publicado originalmente em: guaja.cc
