No final dos 80 eu era feliz proprietária de um jogo de panelas de alumínio brilhoso adquiridas no Mercado Central.
A trempe instalada sobre dois tijolos era alimentada por jornal e galhos verdes da goiabeira do quintal, embora Jesus nunca tenha dado as caras por lá, eu cozinhava com esmero. O cardápio era variado, mas tudo tinha o mesmo gosto: sal pra caceta, óleo e caldo knorr. E um magnífico retrogosto de fumaça, por certo.
Não entendia bem porque as pessoas daquela casa não aceitavam muito minha oferta generosa de pequenas degustações. Irremediavelmente eu acabava por compartilhar as refeições apenas com o Bastião, um galo adolescente que ganhei ainda pinto num dia das crianças no BH Shopping.
Viramos o século e feliz estava eu nesse ultimo domingo indo conhecer um novo restaurante. A casa é um charminho e fica numa rua tranquila do bairro Gutierrez, o Verano Gourmet. A proposta do menu, embora o site não revelasse isso, é estilo Gennaro: entradas e pratos por faixa de preço. Custo excelente; benefício… ?
O vinho
Carta pequena, barata e simples. Escolhemos um e o garçom já avisou que não devia ter. Demos mais duas possibilidade no maior clima de bom mesmo é ser feliz e mais nada. O moço volta trazendo um dos indicados, só que de outra uva. Questionado sobre ele responde numa pachorra que me lembrou Caymmi dando entrevista deitado na rede “esse tem não amigo, tem não…”
Entrada
Meus primeiros lampejos do gostinho de comida de infância. Os bolinhos de risoto em muito lembravam o meu arroz com gosto de nada e textura de lama com um plus de serem de cor amarelo radioativo .
Principais
O marido pediu uma picanha mal passada e farofa de ovos pra acompanhar. Eu rodei o cardápio e havendo sentido um cheiro mais forte do que agradável do peixe da mesa ao lado, resolvi simplificar porque a proposta era ser feliz, tá lembrado? Medalhão de filé com pappardelle trifolati. Mesmo sem ser perguntada pedi que viesse ao ponto (a essa altura, já completava mentalmente – do chef).
Meia hora depois volta o gajo com o seguinte script: “Sabe o que é, amigo? É que esse lote de picanha não tá muito legal não. Tá meio estranho e o chef decidiu não fazer. É melhor ser honesto do que servir uma comida que vai estar ruim, não é?” Claro, ora poxa obrigada por avisar, realmente você é muito gente boa, amigão! Pensei enquanto marido falava entre-dentes que podia ser o ancho. Nesse ponto a gente já sabia que era cilada, Bino; mas eram três horas da tarde eu estava com um bolinho de lama radiotiva na bucha e achei que o espetáculo não podia ir muito além.
Mais meia hora, chegam os pratos e eu fui tirar o meu estômago das costas. Na primeira garfada sou tomada por um envolvente Déjà vu. A massa desmancha num molho de caixinha saborizado ao caldo Knorr. O medalhão é cinza, o gosto de sal; uma fênix desidratada que não renasceria porque se lascou feio.
O ancho veio no ponto, mas também com sua saca de sal própria. A carne feia com sangue mal distribuído, certamente descongelada às pressas. A farofa de óleo e não de ovos era half/half de farinha e sal.
Aí veio o clímax túnel do tempo final: eis que descubro que tal qual as minhas comidinhas, o meu prato também continha corpos estranhos. Não folhas, fuligem ou uma formiguinha desavisada, mas o plástico filme que envolvia o medalhão não havia sido retirado. Rará!
Hanna, por que você não reclamou, cuspiu no gerente e falou que não pagaria? Tem coisas que você questiona outras você simplesmente não discute por pertencerem ao campo kafkiano. Porque aí não dá pra entender, ajudar. Porque não tem pé, cabeça, cuidado ou credibilidade. Porque você se sente no corredor do “O Iluminado” e ao invés das gêmeas você dá de cara com o Bastião, gargalhando alto e falando com a voz do Mouro: vingança é um prato que se come frio!
