Eu tinha oito anos e estava no alpendre, sentada no colo do meu pai que tomava uma cerveja. Ele me contou em tom de suspense, que iríamos nos mudar de casa e pediu segredo, creio que pra tornar a notícia mais grandiosa. Cochichou no meu ouvido:
– A casa nova tem piscina!
E ficou me olhando, esperando minha euforia pipocar. Eu lembro de franzir o cenho e ficar tentando entender o que aquilo significava. Acho que nunca tinha pensado na possibilidade de existir uma casa que tivesse uma piscina só pra ela. Minha ideia de piscina sempre foi de uma coisa compartilhada, como aquelas do Uai ou do Cruzeiro Esporte Clube que frequentávamos poucas, mas plenas vezes. Eram dias idílicos nos quais tudo era permitido. Picolés antes do almoço, rodar muito forte no gira-gira, quase ser cuspido dele e eventualmente arrancar o tampo de um dedão. Sumir providencialmente quando sentia se aproximar a hora da partida e, invariavelmente sair de lá com uma pilha de novos amigos, algum desafeto, uns tapas trocados e muitos caldos tomados.
No meu mundinho de oito anos vividos num bairro de periferia da cidade, não me lembrava de ter visto piscina em casa alguma, nem mesmo na casa da Alba, que era linda, tinha dois andares e um jardim grandão. E olha que a mãe da Alba era diretora da escola! Gente que mandava nas escolas, fossem elas públicas como a que eu estudava, me causavam frisson. Eu imaginava que eram as pessoas mais abastadas e importantes que existiam, afinal era algo muito grandioso mandar numa escola todinha.
Não sei quanto tempo levou para que eu conhecesse a tal casa nova. Mas lembro que enquanto isso não acontecia, a notícia já se espalhara tanto que a tia Beth e a outra professora que eu não recordo o nome, me pararam no corredor da escola pra dizer:
– E aí Hanna, vai morar no Funcionários, né? Ficou chique! Vai abandonar os pobres aqui.
Eu realmente não tinha a menor noção dessa “divisão de classes” que regia a vida, que Funcionários era um bairro de “gente rica” e eu morava num lugar de “gente pobre”. Meu universo periférico era completo, pra mim não faltava nada. Claro que eu gostava quando meu território era expandido, quando por exemplo me levavam ao centro da cidade pra comer coxinha da Torre Eiffel. Ou em outras preciosas ocasiões, que era levada pra passear no BH Shopping. Ir ao shopping era o ápice da minha vida social, apesar de ser bem custoso chegar até lá. Era preciso tomar um ônibus até a prefeitura e de lá pegar o 8001, invariavelmente lotado o que nos obrigava a ficar de pé durante o longuíssimo percurso (pra minha noção de distância da época) e chegar ao destino com as pernas sempre doloridas. Dor nas pernas que passava instantaneamente ao entrar e, não voltava mesmo que completássemos uma maratona lá dentro, no inefável prazer de flanar assistindo às vitrines e tomando sorvete.
Chegou o esperado dia da mudança. Há essa altura eu já dizia a todos, interessados ou não, que iria me mudar para o bairro dos Operários, (é claro que nem precisa ser Freud para entender o lapso) para uma casa que tinha piscina. Não apreendi maiores detalhes desse dia, mas lembro com nitidez da primeira visão da piscina.
Era uma piscina elevada, com a borda quase da minha altura, cravada num pátio de cimento. Suja e vazia. Olhei para o meu pai, com a fúria de mulher traída. Vê se aquilo era piscina? Ele disse que logo, logo estaria tinindo, que eu iria nadar muito lá. Algo que nunca aconteceu porque além de custar uma fábula para enchê-la por completo, ela vazava (muita) água. Dessa maneira, me restou desfilar de maiô fazendo a garota do Fantástico em volta dela e escorregar de barriga nos dois dedos de água estancados.
Desamparada como uma vítima de estelionato, não sobrou alternativa senão explorar outras potencialidades da casa. Era uma casa muito grande e cheia de contrastes que eu não conseguia entender muito bem. O piso da sala de jantar era de uma ardósia escura, mas que não cobria toda a área, ficando banguela em alguns cantos. Depois me explicaram, que eram armários embutidos (coisa que também desconhecia a existência) que foram extirpados por quem tinha se mudado de lá.
Ao contrário da piscina, os banheiros nunca me decepcionaram. Trancada neles nos anos que seguiram, eu vivi as melhores crises existenciais e sofri, como manda o figurino, por amores canastrões. Um dos banheiros, tinha uma banheira marrom que nunca saiu água quente e uma portinha embaixo da pia, pela qual você jogava a roupa suja que já caia direto na lavanderia. Eu achava isso genial! O outro banheiro era todo em mármore branco e lá os armários embutidos tinham sido preservados. Era o banheiro perfeito, meu refúgio de todas as horas. Tinha uma luz muito boa pra fazer caras, ensaiar falas e antecipar situações em frente ao espelho; praticamente um palco com ribalta. Lembro que um dia meu pai arrombou a porta desse banheiro, furioso porque eu tinha feito pirraça diante da ordem para ir tomar banho (o chilique não era tanto pelo banho, mas porque queria continuar sapeando o carteado que rolava por lá).
– Você nunca mais, nunca mais, desobedeça a sua mãe desse jeito! Bradou ele com sua voz cavernosa de locutor de rádio dos anos 50. Foi o maior cagaço que já passei e não me lembro de ter havido outro sacode deste nível vindo dele. Quando a taquicardia passou e o sangue voltou a circular, eu, edipiana completa, fiquei achando que meu pai era um baita dum herói; imagina ter poderes de arrombar uma porta? E claro, tive ódio da minha mãe.
A sala de TV, tinha um painel de madeira bem datadinho cobrindo uma das paredes e na outra um papel de parede, coisa que mexe comigo até hoje, sou tarada num papel de parede. Esse papel era estampado com umas folhagens verdes, mas tinha um grande rasgo que ficava localizado em cima de uma das poltronas do jogo de sofá. Essa falha me entristecia enormemente. Mais tarde alguém providenciou uma espécie de painel, estampado no mesmo tema folhoso, mas que não cobria o rasgo por completo, no clássico caso de que a emenda ficara pior que o soneto.
O resto da casa em si não me despertava maiores emoções, mas, as áreas periféricas representavam o meu universo particular. Havia um túnel debaixo da escada que dava pro terreiro (e pra pseudo piscina) que eu tinha convicção plena, de ser uma passagem para um jardim secreto. Talvez por influência do livro que eu lera há pouco, intitulado “O Jardim Secreto”? Obviamente. Mas eu acreditava piamente nessa ideia e passei anos tentando encontrar na escuridão de paredes úmidas, a recôndita maçaneta para o portal.
No quintal jazia uma goiabeira anêmica, árvore solitária encravada num piso de brita cinzenta que se estendia por um espaço imenso, antes usado como estacionamento para carros. Essa árvore derradeira foi testemunha de muitos segredos e mexericos entre mim e as amigas que saçaricavam por lá. Ela também, generosamente me fornecia a madeira e folhas (invariavelmente verdes) para alimentar o meu outrora brilhante fogãozinho à lenha de três trempes. Ao pé dessa goiabeira, ficava a minha operante cozinha de fuligem e fumaça um pouco tóxica, de onde saiam pratos como arroz “rijo” ao óleo e ragu de salsicha enlatada com ketchup. Iguarias divididas com Bastião, meu galinho adolescente que teve um triste fim.
A casa tinha três barracões anexos que minha mãe viria a alugar, para complementar o parco orçamento mensal. Um dos puxadinhos, eu nunca simpatizei, o mais arrumadinho de todos, que ficava nos fundos da casa atravessando um longo corredor depois do alpendre. Acredito que nunca me afeiçoei a ele pelo fato de ter ficado alugado a maior parte do tempo que vivemos naquela casa. O primeiro inquilino que ocupou o espaço foi o Seu Natal (um senhor, acredito que não era tão senhor assim, mas pra mim qualquer um que passasse dos quarenta já era velhíssimo) que tinha uma loja autorizada para conserto de aparelhos Panassonic a poucos metros de distância. Morou conosco por muito tempo e nunca trouxe problema algum, sempre sorrindo e discreto. Depois o negócio dele prosperou e minha mãe falava do Seu Natal com orgulho e carinho, como uma espécie de filho que alçara voo. Mas nem todos que passaram por lá foram tão gentis assim, convivemos com figuras menos afáveis e outras até bem estranhas.
O segundo barracão ficava na parte debaixo da casa, à direita da goiabeira. Tinha o pé direito bem baixo, quase sufocante, duas salas e um banheiro. Bem mal-ajambrado, talvez por isso tenha ficado sem alugar por muito tempo, até achar um inquilino ainda mais mal-ajambrado do que ele, que causou muitos transtornos na época. Mas isso é outra história. Esse barracão funcionava como minha biblioteca e palanque do faz-de-conta, no qual eu passava as tardes saboreando livros improváveis sobre homeopatia ou sociologia, “só pra exercitar” como dizia Cazuza, outros um tanto impróprios, além dos afetivos, como a minha queridíssima coleção Vagalume (jamais esquecerei o desenho do terrível escaravelho que estampava uma das capas). Marcos Rey pode ser considerado o meu primeiríssimo crush intelectivo.
O terceiro barracão ficava anexo à fachada da casa e dava pra rua, com entrada independente. Tinha um par de degraus ao entrar e o piso era de carpete marrom. Um cômodo amplo e um banheiro. Lembro de dormir lá algumas vezes, me imaginando adulta e livre (como se as duas coisas fossem compatíveis). Ainda bem que nunca me passou pela cabeça a ideia de cozinhar nesse meu apê, e contentava em me alimentar durante as estadias por lá de biscoitos e nescau do take-away vizinho.
Foram os anos mais intensos da minha infância. Regados a muita fantasia e experimentos. Todos nós que moramos ali (eu, minha mãe, quatro irmãos, uma empregada e meu pai eventualmente) guardamos por esse endereço uma afeição sem medida. Foram poucos anos vivendo ali, por volta de cinco. A casa pertencia a um político tradicional, amigo do meu pai, e nos foi cedida por um aluguel abaixo do mercado, e só se mantinha ainda de pé para fins de mera especulação imobiliária. Quando pude compreender isso, soube por que ela era tão cheia de contradições e coisas que não se encaixavam. Era como se a casa fosse uma metáfora perfeita da própria vida. O castelo de uns, representava apenas ansiados escombros para outros.
E assim foi. A casa da rua Ceará 1194 foi demolida e no seu lugar nasceu um prédio bem alto, de uns doze andares creio eu. A numeração mudou e não existe nenhum vestígio do que foi um dia. Recentemente estive com minha mãe na casa vizinha de frente; atualmente um belíssimo espaço de cultura e arte do estilista Ronaldo Fraga. Da sacada da casa dele avistamos o prédio mudo e insípido, infundado naquele “nosso” lugar. Numa troca de olhares silentes, nos olhos marejados da minha mãe, pude ver nesse dia que a casa da rua Ceará jamais deixará de existir; ainda que seja apenas ( e irrestritamente) nos alicerces das nossas almas.

Texto mais l
Filhota, como sempre vc com o dom de nos transportar e nos permitir absorver suas memórias, Eu, embora com tantos anos ha mais que vc , me surpreendi pela semelhança de alguns episódios de sua estória. Mas, existem sentimentos que não são necessariamente ligados à idade, né mesmo? Te enxerguei com a mesma nitidez em que me vejo criança até ao adolescer, Não citarei aqui minhas recordações pois a maravilhosa escritora é vc tão somente. Mas preciso te dizer que foi delicioso ler, sentir e escutar seu coração,. Parabéns minha linda! Obrigada pela oportunidade de viajar com vc nesse túnel abastecido de surpresas e profundos sentimentos, Êita!!!
Um tantão de beijos na testa e na bochecha,
Filhota, como sempre vc com o dom de nos transportar e nos permitir absorver suas memórias, Eu, embora com tantos anos ha mais que vc , me surpreendi pela semelhança de alguns episódios de sua estória. Mas, existem sentimentos que não são necessariamente ligados à idade, né mesmo? Te enxerguei com a mesma nitidez em que me vejo criança até ao adolescer, Não citarei aqui minhas recordações pois a maravilhosa escritora é vc tão somente. Mas preciso te dizer que foi delicioso ler, sentir e escutar seu coração,. Parabéns minha linda! Obrigada pela oportunidade de viajar com vc nesse túnel abastecido de surpresas e profundos sentimentos, Êita!!!
Um tantão de beijos na testa e na bochecha,
meu Deus que primor!! me senti transportada para as minhas casas de infância e adolescencia no bairro da Floresta!!! Voce é uma contadora de estória fantástica, seu modo de escrever é super agradável de se ler!! Mais uma vez , parabéns!!!!
Meu avó morou no prédio ao lado do atual espaço do Ronaldo Fraga. Tenho lembranças muito preciosas de lá, de quando minha avó ainda era viva, e depois de passeios pela redondeza de mãos dadas com o vovô até os meus nove anos: o açougue vizinho e o açougueiro que falava que queria se casar comigo, lojas de ferragens e a padaria ao lado da ACM, onde eu era premiada com um iogurte que continha geleia de morango no fundo do pote. Quando passo por aquela parte da rua Ceará ainda me espanto com tantos lugares familiares e que ainda existem e me emociono. Sinto muito que sua casa não esteja mais lá.
Lembranças preciosas, né? Obrigada por compartilhar as suas. Eu ia muito àquela padaria, e invariavelmente à banca de revista em frente para trocar revistinhas da turma da Mônica. Ô saudade boa! Beijo procê!
É bom demais relembrar essas sensações da infância, né? Dá um aconchego na gente… Obrigada minha querida, um beijão pra você! ?
Mãezinha, não sei o que é, mas acredito mesmo que temos um “elo” de afinidades muito grande. Vidas passadas? Rs. Não sei, mas é amor! ❤
Não veio seu comentário todo… ?
Adorei! Você deveria escrever para muitos leitores!!!
Hanna, que lindeza, muito bom seu texto e dividir as suas singelas memórias. Parabéns!! Um cisco caiu aqui e me transportou para minha casa com goiabeiras e passeios pelo 8001, viajamos para ir ao shopping kkk…